sábado, 19 de agosto de 2023

Conheça as 3 eras do seguro automóvel no mercado segurador brasileiro:

MERCADO 1.0

         Até 1986, o mercado de seguro de automóveis brasileiro era “tarifado”, com suas condições contratuais e preços fixados pelo governo, através da SUSEP e do IRB. Conforme Julio Avellar, na época então vice-presidente de produto da Sul America Seguros: (...) era um “desastre”, uma “coisa sinistra” – menos de 1 milhão de segurados mal servidos, a profunda injustiça dos preços médios, os seguradores perdendo dinheiro e os corretores imaginando-se protegidos por uma comissão obrigatória e tarifária de 15%, mais algumas benesses dependendo da seguradora.””

            Durante o Governo José Sarney (15 de março de 1985 a 15 de março de 1990), no bojo do processo de liberação econômica geral do país, durante um período conturbado da economia, o então superintendente da SUSEP, João Regis Ricardo dos Santos (que incrivelmente  persistiu no cargo ao longo da passagem de cinco ministros da Fazenda, em um período de cinco anos, que foi até ao então governo Collor,  período este em que a Fenaseg teve três presidentes) , editou a Circular 027/1986, que, com um único artigo, revogou diversas normas que regiam o Seguro de Automóveis, liberando a tarifa de automóveis.  As seguradoras poderiam desenvolver novas coberturas, praticar preços próprios (tarifa própria) e definir livremente o nível de comissões a serem pagas aos corretores de seguros (que apresentou na média, elevação percentual com a respectiva liberação).  Até então o produto era absoluta e completamente engessado, definido pela SUSEP e IRB (na época ainda monopolista), conforme estipulado na Circular SUSEP 18/1983, como exemplo da forma como o produto era controlado, neste período que consideramos como a Era 1.0 do seguro auto, onde o produto era quase uma “comoditie”.  

           Logicamente algumas evoluções ocorreram no seguro automóvel antes de 1986, e os segurados podiam escolher livremente a sua seguradora - que pese ainda ser um mercado fortemente concentrado por conta de decisões governamentais ainda da década de 70, como o decreto 1.150/70, que incentivava a fusão e a incorporação de seguradoras aos grandes grupos financeiros e bancários, e a questão das cartas patentes, onde não se permitia a abertura de novas seguradoras, ou seja para entrar no mercado era preciso comprar uma seguradora já existente -  mas tínhamos até então um produto padronizado, como na famosa frase de Henry Ford que dizia: “Qualquer cliente pode ter o carro da cor que quiser, desde que seja preto”.

Nesta fase, pelo próprio formato do mercado e engessamento de preços e produtos, para os Corretores de Seguros não havia sentido operar com várias seguradoras, e os mesmos acabavam em sua grande maioria, atuando mais como agentes (representantes – chamados inspetores) das companhias seguradoras, do que como Corretores de Seguros independentes, como especifica a Lei 4.594 de Dezembro de 1964, que ainda hoje regula a profissão. Algumas seguradoras, reconhecendo tais “agentes” como elemento vital ao bom andamento dos seus negócios, passaram a organizá-los e espalhá-los por todo o território em inspetorias, modelo que persistiu no mercado até o final da década de 1990. Somente com o advento do Código Civil de 2002 (artigo 775), a figura do agente voltou a ter significado jurídico próprio, se distinguindo na prática com o Corretor de Seguros e passando a caracterizar uma venda direta por um profissional com vínculo com a seguradora.

 

 MERCADO 2.0

Mesmo com a liberação da tarifa do seguro automóvel realizado pela Circular 027/86 (anexo 2), alguns anos se passaram até que o mercado começasse a sair do padrão.

Com o advento do Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078 em 11/09/1990) passa a existir um foco maior no consumidor e as seguradoras são obrigadas a adequar seus produtos e Condições Gerais ao novo código, e a novas regulamentações do CNSP e a SUSEP.

 Encontra-se no Anexo 3, a Circular SUSEP 256/2004 (revogada pela circular 621/2021 constante no anexo 4) que representava o principal marco de regulação deste período. A comparação entre o anexo 1 (circular SUSEP 18/1983) e o anexo 3 (circular 256/2004) demonstra a medida da evolução do processo regulatório entre o que chamamos de MERCADO 1.0 e o MERCADO 2.0 do seguro automóvel no Brasil.

Somando-se a circular 256, as circulares 251 e 269 de 2004 (revogadas pelas circulares 639 e 642 de 2021) representaram os principais pilares regulatórios deste período, onde a SUSEP focou em respaldar a proteção ao consumidor.

Na concorrência e atuação das seguradoras, com a desregulamentação das tarifas, a abertura econômica e a estabilidade monetária, propiciada pelo plano real à partir de 1994, temos um retorno da internacionalização do mercado segurador (que já havia sido muito forte antes da era Vargas), seja através de participação direta ou da crescente participação do capital estrangeiro na constituição das seguradoras que operam no país. O maior volume de capital estrangeiro, a crescente informatização e o advento da internet, modificam a estrutura e o cenário do mercado em seus aspectos operacionais.

Apesar do mercado brasileiro ainda ser dominado neste período por corretoras de médio e pequeno porte (estas com capacidade reduzida de realização de investimentos em sistemas de informação – situação que continua até os dias de hoje), a tecnologia começa a impactar a maneira como seguradoras e corretores de seguros se relacionam, por meio de cálculos e transmissões eletrônicas de propostas, protocolos eletrônicos, agendamento de vistorias através de extranet/internet, emissão de apólices com certificação digital sem o envio de apólice física para os corretores e regulação de sinistros com sistemas integrados entre vistoriadoras, oficinas e seguradoras.

Os corretores passam a adotar lentamente a T.I durante a década de 1990.  Neste período, diversos sistemas administrativos e de gestão para corretoras de seguros começam a ser desenvolvidos. Com os computadores ajudando a organizar a rotina de trabalho, aos poucos vão se aposentando as máquinas de calcular e de datilografar e os aparelhos de fax, e vai se otimizando o espaço físico, uma vez que muitos dos documentos passam a estar em formato apenas digital.

A adoção da T.I e desses sistemas propicia às corretoras de seguros ganhos de produtividade, uma vez que as informações podem ser buscadas com facilidade. Mesmo que, num primeiro momento, a corretora gaste dinheiro com a compra e implantação do sistema e tempo dos funcionários com seu treinamento, este custo passa a ser compensado em breve. Quando as pessoas passam a ter procedimentos a seguir, ganham tempo, e os principais sistemas gerenciadores de corretoras de seguros geralmente já trazem encapsulados as melhores práticas e procedimentos de mercado através da melhoria contínua de anos de utilização e aprimoramento de processos por diversas corretoras de seguros. Os corretores que passam a utilizar a ferramenta, automaticamente, passam a contar com esse know how que outras corretoras levaram anos para adquirir e foi sintetizado dentro do software de gestão.

Ainda na década de 1990, as seguradoras passaram a fornecer aos seus corretores sistemas/programas de cálculo para a realização do cálculo do prêmio do seguro, que até então era executado de maneira manual pelos corretores. Ao longo do tempo, a adoção dessa ferramenta permitiu que as seguradoras melhorassem sua política de subscrição de riscos, incluindo mais variáveis para a formação de preços e estabelecendo e consolidando o uso do questionário de avaliação de risco (perfil).

Com o passar dos anos, esses sistemas, que eram fornecidos inicialmente em disquetes e rodavam localmente nos computadores dos corretores, migraram para a Internet e passaram a ser integrados à intranet da seguradora, que também passou a fornecer dados sobre comissões recebidas, aviso sobre as renovações a serem feitas, bem como sobre a gestão de cobranças e pagamento de
parcelas dos seus segurados.

Neste período, graças a informatização e as ferramentas de T.I, a quantidade de variáveis necessárias para o cálculo de um seguro de automóvel cresce significativamente, tornando inviável a realização do mesmo cálculo de forma manual (como era executada) pelo corretor de seguros e até mesmo dificultando as incipientes tentativas de comercialização pela internet, pela enorme quantidade de variáveis e informações necessárias que eram solicitadas para a realização do orçamento.

  Se desenvolvem neste período os sistemas de multi-cálculo, projeto que visa unificar as diversas plataformas de cálculo em uma só, de maneira a aumentar a produtividade na corretora e evitar retrabalho de digitação. Seu principal desafio passa a ser o processo de atualização constante e permanente, o qual é bastante trabalhoso.

 A adoção dos “robôs de cálculo” por estes sistemas, que são ferramentas que apenas replicam as informações digitadas pelo corretor em um único formulário, nos diversos sistemas das seguradoras, populariza e torna acessível este tipo de ferramenta para a grande maioria das corretoras de seguros e pôr fim a integração do mesmo aos sistemas gerenciadores das corretoras de seguros, passam a otimizar os processos de cálculos de renovações da carteira.

O CNSP através da Resolução 294 de 2013, tenta criar uma regulamentação para a venda de seguros por meios remotos em grande parte pensada na venda direta e pela Internet, sem levar em conta a atuação dos corretores de seguros neste canal de vendas, porém neste período praticamente a totalidade das vendas remotas de seguros realizadas no país se dá por meio de telefones/ call centers, e as tentativas de venda on-line que surgem após o período são em sua grande maioria realizadas por corretoras de seguros ou empresas constituídas como tal (Minuto Seguros, Economize no Seguro, Bidu, Smartia, Sossego, Segurar.com , Genial) , o que cria diversos entraves a sua aplicação prática. Apesar disso, a medida só foi revogada pela resolução CNSP 408 de 2021 a qual passa a mencionar o “intermediário” (que pode ser o corretor de seguros) em sua redação.

O estrago ocorrido em outros mercados causado pelos agregadores de preços (comparadores de preços on-line entre diversos players do mercado, como ocorrido na Inglaterra, onde as empresas entraram em uma guerra de preços resultando em muitos prejuízos, gastou-se muito com marketing e ferramentas de divulgação on-line e ocorreram muitas fraudes, faz com que a grande maioria das seguradoras em operação no mercado brasileiro, adotassem no período, ainda bastante cautela em relação as vendas on-line.

 

MERCADO 3.0

            Após diversas tentativas de vendas on-line de seguros de automóveis, através de startups e Insurtechs (ou de tentativas de venda direta por parte das seguradoras) fracassarem ao longo da década de 2010 no mercado brasileiro (sendo o seguro o produto com o maior índice de rejeição para compra online neste período, conforme pesquisa do SPC – Serviço de Proteção ao Crédito), a SUSEP resolve criar um ambiente regulatório experimental com condições para facilitar a implantação destes projetos, denominado Sandbox Regulatório. As sociedades participantes do Sandbox podem testar sob a supervisão da Susep, novos produtos ou serviços, que devem operar sempre e obrigatoriamente através da utilização de meios remotos. Porém mostrando uma maior diversificação do que as tentativas da década passada, grande parte destas iniciativas estão focadas em produtos de tíquete médio mais baixo, e não somente no seguro automóvel, como produtos de seguro para celulares, bicicletas, seguro-viagem, cobertura para pets e seguro fiança locatícia. 

A Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), na gestão da superintendente Solange Paiva Vieira (fevereiro de 2019 a outubro de 2021)  e seguindo orientações do Ministério da Economia, inicia uma série de medidas tentando a desintermediação do mercado, em nome da livre concorrência", da "desburocratização" e da redução de custos de transação, como a inclusão na Medida Provisória 905 de 2019 (programa Verde Amarelo de estimulo ao emprego) da revogação da Lei 4.594 de 1964 (que regula a profissão de corretor de seguros). Após forte pressão e discussões na câmara federal e atuação de líderes como o deputado Lucas Vergílio, a MP acabou perdendo efeito (caducou) e acabou não passando pela votação do Senado Federal. Porém a SUSEP através de atos normativos ou circulares continuou durante esta gestão a buscar medidas neste sentido, tais como:

1)     Em setembro de 2019 caiu a obrigatoriedade da comissão da corretagem na venda direta de seguros por meio de bilhete.  Até então se o contrato de seguro fosse fechado sem um corretor de seguros, a comissão de corretagem (que até então era obrigatória), era entregue em todos os casos sem corretor, ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Educacional do Seguro (destinado à criação e manutenção de escolas e cursos de formação e aperfeiçoamento profissional de corretores de seguros e prepostos e a bibliotecas especializadas), administrado pela Escola Nacional de Seguros (ENS). O que se prevê com tal medida é que grande parte dos contratos de seguros vendidos pela internet ou no âmbito do Sandbox regulatório sejam emitidos na forma de bilhete.

2)     À partir da resolução do CNSP número 382 de março de 2020, art. 4º os intermediários ficaram obrigados a disponibilizar formalmente ao cliente informações sobre o montante de sua remuneração pela intermediação do contrato, acompanhado dos respectivos valores de prêmio comercial do contrato a ser celebrado.

3)     Como parte do Open Finance, termo adotado pelo BACEN como ampliação do Open Banking, a SUSEP resolve implementar o Open Insurance, ainda com fortes restrições e críticas por parte das seguradoras, que entendem que o mesmo só deveria ser implantado após a conclusão do Sistema de Registro de Operações (SRO) – que visa permitir que todas as operações de seguros sejam registradas na SUSEP. As principais seguradoras investem aproximadamente R$ 100 milhões em tecnologia para cumprir as exigências do órgão regulador, porem a implantação ocorre de forma apressada (o que pode gerar problemas futuros relativos a controle e segurança) e baseada apenas no open banking, sem seguir as particularidades do setor de seguros ou de experiências internacionais, uma vez que, por exemplo a Europa só pensa em estabelecer as regras do Open Insurance em 2023. Porém as prometidas melhorias pela SUSEP a serem obtidas com o sistema só serão possíveis com um grande uso e adesão do sistema pelos consumidores, o que de uma maneira geral não ocorreu ainda nem mesmo com o Open Bank.

 

De olho nestas mudanças e motivadas por outras mudanças de legislação (surgimento da LGPD), algumas seguradoras buscam em suas rotinas processos de simplificação do questionário de avaliação de risco (perfil), retirando de seus questionários itens como a informação sobre guarda do veículo (seja na residência ou no local de trabalho), quanto a km. mensal percorrida com o veículo, ou até mesmo sobre o estado civil dos condutores, e quanto existência de pessoas ente 18 e 25 anos que possam vir a utilizar o veículo esporadicamente.  Também se acelera com a pandemia do coronavírus, o uso por parte das seguradoras de aplicativos e rotinas de self-vistoria (autovistoria), onde o próprio segurado realiza a vistoria prévia do veículo, ou até mesmo através da consulta eletrônica ao histórico do veículo, a respectiva dispensa da realização de vistoria em alguns casos.

Autor: Miro Cequinel (2022), Ensaios e rascunhos para o Livreto do Curso SEGURO AUTO, Técnicas, Conceitos e Comercialização no Mercado 3.0 da ENS.